Do segundo ao quarto dia da Assembleia, cerca de mil participantes vivenciaram momentos de escuta, espiritualidade e reflexão profunda sobre os desafios da missão cristã nas comunidades amazônicas
Por: Henrique Cavalheiro – Comunicação do CPP
Os tapiris temáticos, realizados ao longo do segundo e terceiro dia da VI Assembleia das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da Prelazia de Tefé, proporcionaram aos cerca de mil participantes um espaço intenso de formação, diálogo e comunhão. Inspirados na tradição amazônica, os tapiris, estruturas simples, onde o povo se reúne para conversar e decidir, tornaram-se símbolo da escuta sinodal e da partilha de saberes durante o encontro.
Todos os participantes foram divididos em quatro grupos rotativos, o que permitiu que cada pessoa passasse por todas as formações propostas. Os temas refletiram os desafios urgentes da Igreja e da sociedade, abordando diferentes dimensões da missão: Ecologia Integral na Sinodalidade, com o Pe. Dário Bossi, assessor da Comissão Episcopal para a Ação Sociotransformadora da CNBB; Fraternidade e Justiça Social, com o Pe. Ademar Henriques, coordenador da casa de formação da Prelazia de Tefé; CEBs: Barco missionário que inclui todos e todas, com Dom Zenildo Lima, bispo auxiliar de Manaus e referencial das CEBs no Regional Norte 1 da CNBB; Desafios e polarização, com Daniel Seidel, membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz e do Movimento Nacional Fé e Política.
As atividades nos tapiris iniciavam-se sempre com a oração da manhã conduzida pelas comunidades, seguida de momentos de escuta e reflexão coletiva. Os grupos se reuniam em diferentes espaços do município de Alvarães/AM, criando um ambiente de acolhida onde a espiritualidade amazônica se encontrava com o compromisso eclesial.
A polarização como desafio pastoral e social
No tapiri temático Desafios e polarização, Daniel Seidel propôs uma abordagem participativa e crítica sobre os impactos da polarização política e social nas comunidades eclesiais de base e na sociedade brasileira. “O convite foi justamente para que nós pudéssemos ajudar a cada um dos membros das comunidades de base aqui da Prelazia de Tefé a pensar essa ideia da polarização que tem dividido muito as comunidades”, afirmou. Utilizando o método de Paulo Freire e a técnica do sociodrama com cabo de guerra, Daniel levou os participantes a vivenciarem na prática o que significa a tensão entre posições antagônicas, questionando o próprio conceito de “dois polos”. Para ele, a ideia de polarização como simetria entre extremos é ilusória: “Efetivamente não existe dois polos, como extrema esquerda e extrema direita. Existe um polo, que é a extrema direita, que estica a partir da negação que ela faz da própria democracia”, afirmou Seidel.
A atividade também explorou como conteúdos disseminados nas redes sociais moldam opiniões sem reflexão crítica. “Mais do que falar sobre isso, é fazer a experiência de tudo que chega. Peraí, eu tenho que pensar, tenho que me posicionar, tenho que ter uma ideia”, explicou. Daniel incorporou ainda elementos de análise de conjuntura, alertando para o enfraquecimento democrático, os impactos das mudanças climáticas e a necessidade de articulação social diante da COP30. Ao comentar a transição papal, destacou a importância de preservar o magistério de Francisco, apostando na continuidade com o Papa Leão XIV: “Assim como foi João XXIII e Paulo VI, também Papa Francisco e Papa Leão XIV”. Para ele, “a evangelização hoje efetivamente é a presença”, uma presença que reconhece o protagonismo dos povos originários e comunidades tradicionais, pois, como afirmou, “a gente precisa reaprender essa convivência com a mãe terra, com a natureza, com a nossa casa comum, porque se a gente não tomar essa consciência, de fato, a gente está caminhando para o autoextermínio da nossa espécie humana”, disse.
“Enfrentar os desafios dentro da própria igreja, que ainda, muitas vezes, limita a participação das mulheres, e tem uma série de preconceitos em relação a toda a diversidade que a gente enfrenta no âmbito da juventude de hoje, então são muitos desafios, mas a gente só vence os desafios internos a partir de uma perspectiva de um olhar de sociedade também, porque faz com que a gente possa perceber a grandeza das tarefas e da missão e de como que a gente precisa estar efetivamente articulado em redes para poder enfrentar isso”, Afirmou o assessor. Citando Dom Pedro Casaldáliga, concluiu com esperança e compromisso: “Estamos vivendo tempos raríssimos, mas que também são belos”, finalizou.
Ecologia integral: espiritualidade, território e compromisso coletivo
No tapiri dedicado ao tema Ecologia Integral na Sinodalidade, o padre Dário Bossi conduziu uma reflexão profunda a partir da realidade das comunidades da Prelazia de Tefé. “A gente entrou no tema da ecologia integral e da sinodalidade, tentando se inspirar a partir do legado do querido Papa Francisco”, explicou o assessor da Comissão Sociotransformadora da CNBB. Segundo ele, o ponto de partida foi a escuta atenta: “Partimos da escuta da realidade, de qual é a percepção da realidade que essas comunidades têm e qual a percepção do papel da Igreja dentro dessa realidade”, pontuou.
Pe. Dário destacou que os elementos essenciais da ecologia integral, espiritualidade, política, economia, cultura, educação e estilos de vida, foram trabalhados em conexão com a vida concreta dos participantes. “Foi surpreendente descobrir quanto essas comunidades têm uma leitura crítica e madura da realidade”, afirmou. Para ele, a Prelazia de Tefé revela uma “Igreja muito consciente dos desafios, muito comprometida e com ideias claras”, que não é “autorreferencial ou isolada”, disse o padre. Ao final da oficina, três pistas de ação foram identificadas coletivamente: “a defesa dos territórios e dos modos de vida das comunidades; a interconexão entre as ações organizadas da Igreja e da sociedade; e o diálogo com os movimentos populares”. Para o assessor, “essas três colunas da caminhada, me parece, já estão existindo, mas podem também definir um pouco o futuro para fortalecer essa ação da ecologia integral no território”, concluiu.
CEBs como caminho e identidade da Igreja na Amazônia
No tapiri CEBs: Barco missionário que inclui todos e todas, Dom Zenildo Lima conduziu um debate com forte ênfase na eclesiologia e na identidade da Igreja no chão amazônico. “Estamos discutindo a identidade da Igreja ao afirmar as comunidades eclesiais de base dentro da figura do barco, um barco que é missionário, que é includente”, afirmou. Para o bispo, essa reflexão retoma um caminho iniciado com firmeza desde Santarém, em 1972. “O caminho da Igreja Católica na Amazônia passa pela articulação das comunidades eclesiais de base”, reiterou.
Dom Zenildo alertou para o avanço de novos modelos eclesiais que não se fundamentam na experiência comunitária, como movimentos e comunidades de vida que chegam às igrejas locais do interior do Amazonas sem vínculo com o território. “Uma realidade que nos preocupa é a configuração de um novo modelo eclesial e de um novo modo de vivenciar a fé, que busca sua legitimidade, mas que não passa pela articulação da vida comunitária.” disse. Apesar desse cenário, ele destacou que os agentes presentes na assembleia têm reafirmado com clareza que as CEBs continuam sendo expressão autêntica de evangelização. “O anúncio de Jesus passa pelo comprometimento com a vida, e a vida nós falamos do cuidado da Casa Comum.” Para ele, reconhecer as CEBs como caminho da Igreja não é apenas uma conquista, mas “uma grande força de resistência para que a experiência evangelizadora não se aplique a modelos que acabam descuidando do cuidado da vida”, disse.
Fraternidade e compromisso social como base da vida comunitária
No tapiri Fraternidade e Justiça Social: Vós sois todos irmãos, o padre Ademar refletiu sobre a importância da fraternidade como alicerce das comunidades eclesiais de base. “A fraternidade é um motor primordial dentro da vivência comunitária”, afirmou. Segundo ele, mesmo diante do isolamento ou da distância entre as comunidades amazônicas, a fraternidade permite que cada pessoa se reconheça na outra e se comprometa com o bem comum. “Mesmo que eu esteja sozinho, que eu possa ir buscando fazer comunidade, buscando acolher o outro”. A partir dos quatro princípios e virtudes trabalhados por Leonardo Boff sobre a Casa Comum, o padre propôs uma vivência concreta da fraternidade que articule espiritualidade, partilha e responsabilidade social.
Pe. Arnaldo destacou que as CEBs, mais do que encontros de comunidades, são espaços de formação e missão. “A CEBs é um encontro de líderes pastorais, de pessoas das nossas pastorais, que têm uma responsabilidade social de levar os frutos daqui, para que lá, nas nossas comunidades distantes, eles possam dizer: nós não estamos sós”, afirmou Ademar. Para ele, essa experiência sinodal fortalece os vínculos entre realidades distintas e valoriza a diversidade cultural da Amazônia. “Mesmo com a linguagem sendo diferente, o pensamento diferente, o fazer teológico sendo diferente, todos se tornam uma parcela desse corpo, que é Jesus Cristo”, salientou.
Para o padre, é urgente que a Igreja avance do discurso da igualdade para o da equidade. “Todos nós somos iguais, mas alguns precisam de mais atenção, outros precisam de menos atenção. Algumas pessoas precisam e necessitam ser chamadas e acolhidas, outras não, eu só chamo e elas já sabem qual é o seu papel”, afirmou. A partir de sua experiência como formador, ele destacou o desafio das diferenças geracionais dentro das comunidades: “Quando eu recebo jovens de 15, 16, 17 ou 20 anos, percebo que a diferença de idade e de cultura com alguém de 53 é muito latente”. Segundo ele, as comunidades eclesiais de base ainda não vivenciam plenamente essa equidade. “O jovem precisa ser mais ouvido. A gente precisa pensar, de repente, um encontro de CEBs com um tema voltado para a juventude”, ponderou.
Celebração Penitencial
Na sexta-feira (11), as paróquias de Alvarães acolheram as celebrações penitenciais, conduzidas pelos padres presentes na assembleia e com as comunidades como expressão de conversão pessoal e compromisso comunitário. Inspiradas pelo Evangelho do Filho Pródigo, essas celebrações ofereceram um tempo de escuta interior, acolhimento e perdão, convidando cada participante a retornar à casa do Pai com o coração renovado. O sacramento da reconciliação esteve disponível a todos e todas, proporcionando um momento profundo de encontro com a misericórdia de Deus e fortalecendo os laços de comunhão e perdão.
Os participantes também aprovaram por aclamação a “Carta do Povo de Deus na Amazônia para todos os brasileiros: Apelo pela Vida, pela Casa Comum e contra o PL da Devastação”. O documento denuncia os riscos do Projeto de Lei 2.159/2021, que enfraquece os mecanismos de licenciamento ambiental e ameaça diretamente os territórios e modos de vida dos povos da Amazônia. Redigida coletivamente, a carta reafirma o compromisso das comunidades com a defesa da vida e da natureza e foi assinada por diversas organizações. Trata-se de uma manifestação profética que, do coração da Amazônia, convoca todo o povo brasileiros, e especialmente os parlamentares, a se posicionarem contra o retrocesso representado pelo PL da Devastação.